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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Fabrício Carpinejar

Ouvidos de orvalho

Na eternidade, ninguém se julga eterno.
Aqui, nesta estada, penso que vou durar
além dos meus anos, que terei 
outra chance de reaver o que não fiz. 
Se perdoar é esquecer, me espera o pior:
serei esquecido quando redimido.

Não me perdoes, Deus. Não me esqueças.
O esquecimento jamais devolve seus reféns. 

A claridade não se repete. A vida estala uma única vez.

O fogo é uma noz que não se quebra com as mãos.
A voz vem do fogo, que somente cresce se arremessado. 
Não há como recuar depois de arder alto. 
Fui lançado cedo demais às cinzas.

Somos reacionários no trajeto de volta.
Quando estava indo ao teu encontro, 
arrisquei atalhos e travessas desconhecidas. 
Acreditei que poderia sair pela entrada.
Ao retornar, não improviso. 

Minha conversão é pelo medo, 
orando de joelhos diante do revólver,
sem volver aos lados,
na dúvida se é de brinquedo ou de verdade.

O vento faz curva. Não mexo nos bolsos, 
na pasta e na consciência,
nenhum gesto brusco de guitarra, 
a ciência de uma mira
e o gatilho rodando próximo
do tambor dos dentes. 

Derramado em Deus, junto meu desperdício. 

Vou te extraviando no ato de nomear.
Melhor seria recuar no silêncio. 

Cantamos em coro como animais da escureza.
Os cílios não germinaram. 
Falta plantio em nossas bocas, vegetação nas unhas,
estampas e ervas no peito. 
Suplicamos graves e agudos, espasmos e espanto,
compondo esquina com a noite. 

Cantar não é desabafo,
mas puxar os sinos 
além do nosso peso,
acordando a cúpula de pombas. 

Somos fumaça e cera,
limo e telha,
névoa e leme.
O inverno nos inventou.

Não importa se te escuto 
ou se explodes meus ouvidos de orvalho: 
morre aquilo que não posso conversar? 

Ficarei isolado e reduzido, 
uma fotografia esvaziada de datas. 
Os familiares tentarão decifrar quem fui 
e o que prosperou do legado.
Haverei de ser um estranho no retrato
de olhos vivos em papel velho. 

Escrevo para ser reescrito. 
Ando no armazém da neblina, tenso, 
sob ameaça do sol. 
Masco folhas, provando o ar, a terra lavada.
Depois de morto, tudo pode ser lido. 

Vejo degraus até no vôo. 
Tua violência é a suavidade.
Não há queda mais funda
do que não ser o escolhido, 
amargar o fim da fila, 
ser o que fica para depois,
o que enumera os amigos 
pelos obituários de jornal, 
o que enterra e se retrai no desterro, 
esfacela a rosa ao toque
na palidez das pétalas e velas, 
vistoriando cada ruga 
e infiltração de heras entre as veias, 
nunca adulto para compreender.

Não há nada de natural na morte natural.
Divorciar-se do corpo, tremer ao segurar
as pernas, acomodar-se no finito
de uma cama e deitar com o tumulto 
que vem de um túmulo vazio.



Décima elegia

Só na velhice o vento não ressuscita.
A água dos olhos entra na surdez da neve
e escuta a oração do estômago, dos rins, do pulmão.

O sono desce com a marcha dos ratos no assoalho.
Tudo foi julgado e devemos durar nas escolhas.

Só na velhice os grilos denunciam o meio-dia.
O exílio é na carne.

Esmorece o esforço de conciliar a verdade
com a realidade.
A neblina nos enterra vivos.

Só na velhice o pó atravessa a parede da brasa,
o riso atravessa o osso.
Deciframos a descendência do vinho.

Os segredos não são contados
porque ninguém quer ouvi-los.
O lume raso do aposento é apanhado pela ave
a pousar o bule das penas na estante do mar.

Só na velhice acomodo a bagagem nos bolsos do casaco.
O suspiro é mais audível que o clamor.

Recusamos o excesso, basta uma escova e uma toalha.

Só na velhice os músculos são armas engatilhadas.
O nome passa a me carregar.

É penoso subir os andares da voz,
nos abrigamos no térreo de um assobio.
Pedimos desculpa às cadeiras e licença ao pão.

O ódio esquece sua vingança.
Amamos o que não temos.

Só na velhice digo bom-dia e recebo
a resposta de noite.
Convém dispor da cautela e se despedir aos poucos.

Só na velhice quantos sofrem à toa
para narrar em detalhes seu sofrimento.

O pesadelo impõe dois turnos de trabalho.
Investigo-me a ponto de ser meu inimigo.

Sustentamos o atrito com o céu, plagiando
com as pálpebras o vôo anzolado, céreo, das borboletas.

Só na velhice há o receio em folhear edições raras
e rasgar uma página gasta do manuseio.
Embalo a espuma como um neto.

Confundimos a ordem do sinal da cruz.
O luto não é trégua e descanso, mas a pior luta.

Só na velhice a forma está na força do sopro.
Respeito Lázaro, que a custo de um milagre
faleceu duas vezes.

O medo é de dormir na luz.
Lamento ter sido indiscreto
com minha dor e discreto com minha alegria.

Só na velhice a mesa fica repleta de ausências.
Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
após arrebentar-se em música.
Creio na cerração das manhãs.
Conforto-me em ser apenas homem.

Envelheci,
tenho muita infância pela frente.




Um Terno de Pássaros ao Sul


Nasci vingativo,
negando
o que deveria perdoar,

omitindo
o que deveria mencionar,
exagerando para soar falso

que de verdade sinto.
Falsifiquei-me para que fosses
próximo do real.

Ao escapar de tua figura
me tornei igual.
Tudo está perdido, então
tudo é necessário.
Sou a barca que fica
afiando as águas.


Segunda Elegia, Terceira Sede

Ser inteiro custa caro.
Endividei-me por não me dividir.
Atrás da aparência, há uma reserva de indigência,
a volúpia dos restos.

Parto em expedição às provas de que vivi.
E escavo boletins, cartas e álbuns
- o retrocesso da minha letra ao garrancho.

O passado tem sentido se permanecer desorganizado.
A verdade ordenada é uma mentira.

O musgo envaidece as relíquias. Os dedos retiram as teias,
assisto à revoada de insetos das ciladas.
Fujo da claridade, refulge a poeira.
O par de joelhos na imobilidade de um rochedo.

Reviso o testamento, alisando a textura
como um gramático da seda.
Desvendo o que presta pelo som do corte.

O que ansiava achar não acho
e esbarro em objetos despossuídos de lógica
que me encontram antes de qualquer pretensão.

O que fiz cabe numa caixa de sapatos.

Colecionava talhos de madeira, bonecos
adornados com a ponta miúda do canivete.
Lá estava um dos sobreviventes, desfocado,
vizinho das medalhas escolares
e dos parafusos condoídos de ferrugem.

Um auto-retrato não seria tão fidedigno.
Eu era aquela frincha de chão florido, casca e húmus.

Quantas foram as miudezas que não combinavam
com o conjunto e, na falta de harmonia,
abandonei no depósito da infância?

E se faltou confiança para restaurá-las ao convívio,
faltou coragem para excluí-las em definitivo.

Somos o desperdício do que estocamos.
Não aprendemos a desaprender.
Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante.

O porão tem vida própria e respira
o que jogamos fora.
O que refugamos na ceia volta a nos mastigar.

Tudo pode fermentar: o forro, os passos, o odor do braço.
Tudo pode nascer sem o mérito do grito,
como um murmúrio ou estalar de um abraço.
Tudo pode nascer, ainda que abafado.




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