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quinta-feira, 30 de junho de 2011

WALT WHITMAN

Esta é a Forma Fêmea

Esta é a forma fêmea:
dos pés à cabeça dela exala um halo divino,
ela atrai com ardente
e irrecusável poder de atração,
eu me sinto sugado pelo seu respirar
como se eu não fosse mais
que um indefeso vapor
e, a não ser ela e eu, tudo se põe de lado
— artes, letras, tempos, religiões,
o que na terra é sólido e visível,
e o que do céu se esperava
e do inferno se temia,
tudo termina:
estranhos filamentos e renovos
incontroláveis vêm à tona dela,
e a acção correspondente
é igualmente incontrolável;
cabelos, peitos, quadris,
curvas de pernas, displicentes mãos caindo
todas difusas, e as minhas também difusas,
maré de influxo e influxo de maré,
carne de amor a inturgescer de dor
deliciosamente,
inesgotáveis jactos límpidos de amor
quentes e enormes, trémula geléia
de amor, alucinado
sopro e sumo em delírio;
noite de amor de noivo
certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia
de carne doce e envolvente.

Eis o núcleo — depois vem a criança
nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher;
eis o banho de origem,
a emergência do pequeno e do grande,
e de novo a saída.

Não se envergonhem, mulheres:
é de vocês o privilégio de conterem
os outros e darem saída aos outros
— vocês são os portões do corpo
e são os portões da alma.

A fêmea contém todas
as qualidades e a graça de as temperar,
está no lugar dela e movimenta-se
em perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
é ao mesmo tempo passiva e activa,
e está no mundo para dar ao mundo
tanto filhos como filhas,
tanto filhas como filhos.
Assim como na Natureza eu vejo
minha alma refletida,
assim como através de um nevoeiro,
eu vejo Uma de indizível plenitude
e beleza e saúde,
com a cabeça inclinada e os braços
cruzados sobre o peito
— a Fêmea eu vejo.



quarta-feira, 29 de junho de 2011

Henry Miller

Lado a lado com a espécie humana corre outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, incitados por desconhecidos impulsos, tomam a massa sem vida da humanidade e, pela febre e pelo fermento com que a impregnam, transformam a massa úmida em pão, e pão em vinho, e o vinho em canção. Do composto morto e da escória inerte criam uma canção que contagia. Vejo esta outra raça de indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo de cabeça pra baixo, e os pés sempre se movendo em sangue e lágrima, as mãos sempre vazias, sempre se estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus inatingível: matando tudo ao seu alcance a fim de acalmar o monstro que lhe corrói as entranhas. (...) E tudo quanto fique aquém desse aterrorizador espetáculo, tudo quanto seja menos sobressaltante, menos terrificante, menos louco, menos delirante, menos contagiante, não é arte. Esse resto é falsificação. Esse resto é humano. Pertence a vida e à ausência de vida.

Sylvia Plath

"Amo as pessoas. Todas elas. Amo-as, creio, como um colecionador de selos ama sua coleção. Cada história, cada incidente, cada fragmento de conversa é matéria-prima para mim. Meu amor não é impessoal, nem tampouco inteiramente subjetivo. Gostaria de ser qualquer um, aleijado, moribundo, puta, e depois retornar para escrever sobre os meus pensamentos, minhas emoções enquanto fui aquela pessoa. Mas não sou onisciente. Tenho de viver a minha vida, ela é a única que terei. E você não pode considerar a própria vida com curiosidade objetiva o tempo todo..."

segunda-feira, 20 de junho de 2011

domingo, 19 de junho de 2011

Luís Fernando Verissímo

DESABAFO DE UM BOM MARIDO













Minha esposa e eu sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras.
Ela tem um liquidificador elétrico, uma torradeira elétrica, e uma máquina de fazer pão elétrica.
Então ela disse: ‘Nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar’.
Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica.

Eu me casei com a ‘Sra. Certa’. Só não sabia que o primeiro nome dela era ‘Sempre’.
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
Mas tenho que admitir, a nossa última briga foi culpa minha.
Ela perguntou: ‘O que tem na TV?’ E eu disse ‘Poeira’.
No começo Deus criou o mundo e descansou.
Então, Ele criou o homem e descansou.
Depois, criou a mulher. Desde então, nem Deus, nem o homem, nem o Mundo tiveram mais descanso.

Quando o nosso cortador de grama quebrou, minha mulher ficava sempre me dando a entender que eu deveria consertá-lo. Mas eu sempre acabava tendo outra coisa para cuidar antes, o caminhão, o carro, a pesca, sempre alguma coisa mais importante para mim.
Finalmente ela pensou num jeito esperto de me convencer.
Certo dia, ao chegar em casa, encontrei-a sentada na grama alta, ocupada em podá-la com uma tesourinha de costura. Eu olhei em silêncio por um tempo, me emocionei bastante e depois entrei em casa. Em alguns minutos eu voltei com uma escova de dentes e lhe entreguei.

‘- Quando você terminar de cortar a grama,’ eu disse, ‘você pode também varrer a calçada.’

Depois disso não me lembro de mais nada. Os médicos dizem que eu voltarei a andar, mas mancarei pelo resto da vida’.

‘O casamento é uma relação entre duas pessoas na qual uma está sempre certa e a outra é o marido…’

MOTEL 
 
















Mirtes não se aguentou e contou para a Lurdes:
- Viram o teu marido entrando num motel.
A Lurdes abriu a boca e arregalou os olhos. Ficou assim, uma estátua de espanto, durante um minuto, um minuto e meio. Depois pediu detalhes.
- Quando? Onde? Com quem?
- Ontem. No Discretíssimu’s.
- Com quem? Com quem?
- Isso eu não sei.
- Mas como? Era alta? Magra? Loira? Puxava de uma perna?
- Não sei, Lu.
- O Carlos Alberto me paga. Ah, me paga.
Quando o Carlos Alberto chegou em casa a Lurdes anunciou que iria deixá-lo. E contou por quê.
- Mas que historia é essa, Lurdes? Você sabe quem era a mulher que estava comigo no motel. Era você!
- Pois é. Maldita hora em que eu aceitei ir. Discretíssimu’s! Toda a cidade ficou sabendo. Ainda bem que não me identificaram.
- Pois então?
- Pois então que eu tenho que deixar você. Não vê? É o que todas as minhas amigas esperam que eu faça. Não sou mulher de ser enganada pelo marido e não reagir.
- Mas você não foi enganada. Quem estava comigo era você!
- Mas elas não sabem disso!
- Eu não acredito, Lurdes! Você vai desmanchar nosso casamento por isso? Por uma convenção?
- Vou!
Mais tarde, quando a Lurdes estava saindo de casa, com as malas, o Carlos Alberto a interceptou. Estava sombrio.
- Acabo de receber um telefonema – disse. – Era o Dico.
- O que ele queria?
- Fez mil rodeios, mas acabou me contando. Disse que, como meu amigo, tinha que contar.
- O quê?
- Você foi vista saindo do motel Discretíssimu’s ontem, com um homem.
- O homem era você!
- Eu sei, mas eu não fui identificado.
- Você não disse que era você?
- O que? Para que os meus amigos pensem que eu vou a motel com a minha própria mulher?
- E então?
- Desculpe, Lurdes, mas…
- O quê?
- Vou ter que te dar um tiro…

Lima Barreto

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS

 

 

 

 

 

 

 

 

 Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver.
Houve mesmo uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.
O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo: - Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!
- Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado!
- Cansa-se; mas, não é isso que me admiro, O que me admira, é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.
- Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês?
- Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?
- Não, antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.
- Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei:
- Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anúncio seguinte:
"Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc."
Ora, disse cá comigo, está aí urna colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí do café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro andando de bonde e sem encontros desagradáveis com os cadáveres. lnsensiveImente dirigi-me à Biblioteca Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a Grande Enciclopédia, letra j, a fim de consultar o artigo relativo à Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonde, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo malaio polinésio, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.
A Enciclopédia dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, e sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras.
Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava nos jardins e escrevia estes calungas na areia, para guardá-los bem na memória e habituar a mão a escrevê-los.
À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado, ainda continuei no quarto a engolir o meu abecê malaio e com tanto afinco levei o propósito, que, de manhã, o sabia perfeitamente.
Convenci-me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:
- Sr. Castelo, quando salda a sua conta?
- Respondi-lhe então, eu, com a mais encantadora esperança:
- Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor do javanês, e... Por aí o homem interrompeu-me:
- Que diabo vem ser isso, Sr. Castelo?
Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem:
- É língua que se fala lá pelas bandas de Timor. Sabe onde é?
Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos portugueses:
- Eu cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de Macau. E o senhor sabe isso, Sr. Castelo?
Animado com esta saída feliz que deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo Jornal e lá deixei a carta. Em seguida, voltei à Biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter-me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar.
Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao Dr. Manuel Feliciano Soares Albernaz, barão de Jacuecanga, à Rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, e também perguntar e responder: - como está o senhor? - e duas ou três regras de gramática, ilustrando todo esse saber com vinte palavras de léxico.
Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É mais fácil - podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, com maternal carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que cheguei a sentir a simpatia da natureza.
Era uma casa enorme, que parecia estar deserta; estava maltratada, mas não sei por que me veio pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado, daquelas telhas vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou mal cuidadas.
Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.
Na sala, havia urra galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi um belo jarro de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...
Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com um lenço de Alcobaça na mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei, mas fiquei.
- Eu sou, avancei, o professor de javanês que o senhor disse precisar.
- Sente-se, respondeu-me o velho. O senhor é daqui do Rio?
- Não, sou de Canavieiras.
- Como? fez ele. Fale um pouco mais alto, que sou surdo.
- Sou de Canavieiras, na Bahia, insisti eu.
- Onde fez os seus estudos?
- Em São Salvador.
- E onde aprendeu o javanês? - indagou ele, com aquela teimosia peculiar dos velhos.
Não contava com essa pergunta mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai era javanês. Tripulante de um navio mercante viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.
- E ele acreditou? E o físico? - perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado. - Não sou, objetei, lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos, e a minha pele basanée, podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio. Tu sabes que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaxes, guanchos, até gôdos. Ë uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.
- Bem, fez o meu amigo, continua.
- O velho, emendei eu, ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com doçura:
- Então está disposto a ensinar-me javanês?
A resposta saiu-me sem querer:
- Pois não.
- O senhor há de ficar admirado, aduziu o barão de Jacuecanga, que eu, nesta idade queira aprender qualquer coisa, mas...
- Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos...
- O que eu quero, meu caro senhor...
- Castelo, adiantei eu.
- O que eu quero, meu caro Sr. Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que sou neto do conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer, meu avô chamou meu pai, e disse-lhe: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai, - continuou o velho barão, - não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tantos desgostos, tantas desgraças tem caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos dias enunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro que preciso entender o javanês. Eis ai.
Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.
Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in-quarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não sepodia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.
Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afina! contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.
Dentro em pouco dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão inteligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o senhor barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria; aprendia e desaprendia.
A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: "Ë um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!"
O marido de D. Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão), era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nade se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.
Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e as impingi ao velhote como sendo de crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos!
Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava--me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.
Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a causa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também.Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo de que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou uma carta ao visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo.
- Qual! retrucava ele. Vá menino; você sabe javanês!
Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.
O diretor chamou o chefe de secção:
- Vejam só, um homem que sabe javanês - que portento!
Os chefes de secção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam:
- Então, sabe javanês? É difícil' Não há quem o saiba aqui!
O tal amanuense que me olhou com ódio, acudiu então:
- É verdade, mas eu sei canaque. O Sr. sabe?
Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.
A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, consertou o pincenê no nariz e perguntou:
- Então, sabe javanês?
Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do pai javanês.
- Bem, disse-me o ministro, o Sr. não deve ir para a diplomacia: o seu físico não se presta. O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bale onde vai representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Muller, e outros!
Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios.
O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente, e fez-me uma deixa no testamento.
Pus-me com afã no estudo das línguas malaio-polinésias; mas não havia meio!
Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceeding of the English, Oceanic Association, Archivo GlottoIogico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês". Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de aprenderem o tal javanês. A convite da redação, escrevi no Jornal do Comércio, um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa, antiga e moderna.
- Como, se tu nada sabias? interrompeu-me o atento Castro.
- Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.
- E nunca duvidaram? perguntou-me ainda o meu amigo.
- Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A policia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês - uff!
Chegou, enfim, a época do Congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na seção do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bale o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela seção. Não conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano-brasileiro, me estava naturalmente indicada a seção do tupi-guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi.
Acabado o Congresso, fiz publicar extratos do Mensageiro de Bale em Berlim, em Turim e Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo senador Gorot. Custou -me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom barão de Jacuecanga.
Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharaoux, recebi urna ovação de todas as classes sociais e o presidente da República, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia.
Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive sete anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.
- É fantástico, observou Castro, agarrando o copo de cerveja.
- Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?
- Quê?
- Bacteriologista eminente. Vamos?
- Vamos.

Herman Hesse

Lobos













Nunca houvera um inverno tão trio e comprido nas montanhas francesas. Havia semanas que o ar estava límpido, áspero e frio. Durante o dia, os grandes e inclinados mantos de neve, de um branco baço, estendiam-se infinitamente por baixo do céu azul ofuscante; de noite, a Lua passava, pequena e clara, por cima deles, uma Lua terrível a indicar geada com o seu 5 brilho amarelo, cuja luz forte se tomava azul e sombria em cima da neve, assemelhando-se à própria geada. Os homens evitavam todos os caminhos e particularmente as altitudes; indolentes, soltavam injúrias nas suas cabanas da aldeia cujas janelas, vermelhas à noite, pareciam, ao lado da luz azul da Lua, revestidas de uma opacidade fumarenta e rapidamente se apagavam.
Era um tempo difícil para os animais da região. Os mais pequenos morriam de frio, aos imgoin tes, e mesmo os pássaros sucumbiam à geada, os seus cadáveres franzinos eram presa de lobos e açores. Poucas famílias de lobos ali viviam, e a necessidade impeliu-as a formar sociedades mais firmes. De dia saíam individualmente. Aqui e acolá passava um sobre a neve, magro, esfomeado e alerta, silencioso e acanhado, como uni fantasma. A sua sombra estreita deslizava a seu lado, sobre a superfície da neve. Farejando, esticava o focinho bicudo na direcção do vento, e, por vezes, soltava um uivo seco e angustiado. Mas à noite saíam todos em conjunto e circundavam as aldeias soltando gritos roucos. Ali, o gado e as aves encontravam-se bem guardados e, atrás das fortes portadas, as espingardas estavam em posição. Só muito raramente lhes calhava uma pequena presa como um cão, e dois da sua alcateia já tinham sido mortos a tiro.
A geada ainda perdurava. Muitas vezes os lobos permaneciam aninhados, silenciosa mente, aquecendo-se uns aos outros e perscrutando angustiados o ermo morto; até que um deles, atormentado pelos terríveis sofrimentos da fome, saltava de repente soltando um bramido horripilante. Então, todos os outros viravam o focinho na sua direcção, tremiam e deixavam escapar um grito terrível, ameaçador e clamoroso.
Finalmente, a parte mais pequena da alcateia decidiu emigrar. Cedo, de manhã, deixaram os seus covis, juntaram-se e farejaram excitados e cheios de medo o ar gelado. Abalaram então, num trote rápido e regular. Os que ficaram ainda os perseguiam com olhos dilatados e vidra-dos, trotaram alguns passos atrás deles e voltaram devagar para as suas covas vazias.
Os emigrantes separaram-se ao meio-dia. Três deles dirigiram-se para o Jura suíço a leste, os outros rumaram ao sul. Os primeiros três eram animais belos e fortes, mas terrivelmente emagrecidos. A sua barriga clara estava chupada e era estreita como uma correia; no peito, as costelas sobressaíam deploravelmente, tinham as bocas secas e os olhos dilatados e desesperados. Os três conseguiram entrar no Jura profundo. No segundo dia, apresaram um carneiro, no terceiro, um cão e um potro e acabaram por ser furiosamente perseguidos, por todo o lado, pêlos camponeses. Na região, rica em aldeias e cidades, espalhou-se o terror e o medo perante os insólitos intrusos. Os trenós do correio foram armados, ninguém ia sem espingarda de uma aldeia à outra. Nesta região forasteira, após um saque tão bom, os três animais sentiam-se muito bem. mas ao mesmo tempo com medo; tornaram-se mais atrevidos do que alguma vez o tinham sido em casa em pleno dia, penetraram no estábulo de uma granja. Mugidos de vaca, o estalar de barreiras de madeira a lascar, o patear de cascos e uma respiração quente e sequiosa encheram o espaço apertado e quente. Mas desta vez houve intervenção humana. Dois deles foram abatidos, o pescoço de um foi atravessado por um tiro de espingarda, o outro foi chacinado com uni machado. O terceiro escapou e correu, até cair meio morto na neve. Era o mais novo e mais belo dos lobos, um animal orgulhoso de urna força poderosa e formas ágeis. Arfando, ficou deitado durante muito tempo. Frente aos seus olhos giravam círculos verme-lhos de sangue.
por vezes, soltava um gemido silvante e doloroso. Fora atingido nas costas por um golpe de machado. Mas recuperou e conseguiu levantar-se novamente. Só agora se apercebia da grande distância que correra. Não se viam homens nem casas em parte alguma. Mesmo à sua trente ficava uma montanha imponente e cheia de neve. Era o Chasseral. Decidiu torneá-lo. Como a sede o atormentava, comeu bocadinhos da crosta gelada e dura da superfície da neve.
Do outro lado da montanha deparou imediatamente com uma aldeia. O fim do dia estava a aproximar-se. Esperou num denso bosque de abetos. Então colou-se cautelosamente às cercas dos jardins, seguindo o cheiro dos estábulos quentes. Não havia ninguém na rua. Tímido e cobiçoso, pestanejava entre as casas. Soou um tiro. Esticou a cabeça e alongou o passo para correr, quando se ouviu o segundo tiro. Foi atingido. Um dos lados do seu abdómen esbran-quiçado estava manchado do sangue, que corria em gotas grossas e viscosas. Mesmo assim conseguiu escapar, em grandes saltos, e alcançar o bosque do outro lado da montanha. Ali esperou um momento, escutando, e ouviu vozes e passos vindos de duas direcções. Cheio de medo, olhou montanha acima. Era íngreme, arborizada e penosa para subir. Mas nào teve outra escolha. Com o fôlego arquejante, escalou a parede alcantilada, e, lá em baixo, ã volta da montanha, estendia-se uma confusão de injúrias, ordens e luzes de lanternas. Tremendo, o lobo ferido subiu o bosque de abetos meio escurecido, enquanto o sangue castanho corria lentamente do seu flanco.
O frio abrandara. A oeste, o céu estava enevoado e parecia prometer um nevão.
Finalmente, o animal esgotado alcançou o cume. Encontrava-se agora num grande campo de neve ligeiramente inclinado, perto de Mont Crossin, muito acima da aldeia de que escapara. Não sentia fome, mas sim a dor indistinta e persistente da sua ferida. O seu focinho descaído emitiu um latido baixinho e doentio e o seu coração bateu pesada e dolorosamente, sentindo passar sobre ele a mão da morte como um peso indescritível. Um abeto solitário de largos ramos atraiu-o; ali se sentou e fitou melancolicamente a noite cinzenta de neve. Passou meia hora. Caía agora uma luz vermelho-pálida sobre a neve, estranha e suave.
O lobo levantou-se, gemendo, e virou a sua bela cabeça para a luz. Era a Lua, gigante e vermelha de sangue, que nascia a sudeste e subia lentamente pelo horizonte enevoado. Há semanas que não era tão grande e vermelha. Tristemente, o olho do animal desfalecido fixou o disco baço da Lua, e, mais uma vez, um fraco uivo rompeu penosa e silenciosamente na noite. Seguiram-se então luzes e passos. Camponeses com sobretudos fortes, caçadores e rapazes jovens com gorros de peles e grosseiras polainas passavam pesadamente pela neve. Soaram gritos de júbilo. O lobo moribundo fora descoberto, dispararam dois tiros sobre ele e ambos falharam. Então viram que já estava prestes a morrer caíram-lhe em cima com paus e cacetes. Ele ja não sentiu nada.
De membros quebrados, carregaram-no montanha abaixo até St. Immer. Riam-se, gabavam-se, já se deliciavam com a aguardente e o café, cantavam e praguejavam. Ninguém reparou na beleza da floresta coberta de neve, nem no brilho do planalto, nem na Lua vermelha pendurada por cima do Chassera, cuja fraca luz se quebrava nos canos das espingardas, nos cristais de neve e nos olhos mortiços do lobo abatido.

Ben Al-Sayi

A CONTAGEM DOS PÃES














Dois homens que viajavam juntos sentaram-se à beira da estrada, para comer. Um tinha cinco pães, e o outro três. Quando colocaram diante de si a comida, passou por ali um homem e os cumprimentou. Eles o convidaram:
— Senta-te para comer connosco.
Ele se sentou e comeu com eles, consumindo-se durante a refeição os oito pães. O homem então se levantou e lhes deu oito moedas de prata, dizendo:
— Recebam este pagamento pela comida que me deram.
E continuou seu caminho.
Os dois companheiros discutiram sobre o modo de dividir entre si as moedas. O dono dos cinco pães dizia:
— Para mim são cinco moedas, e para ti três, pois isto corresponde ao número de pães que cada um de nós tinha.
— Só me conformarei com a divisão das moedas em partes iguais, pois ele recompensou a nossa hospitalidade, que tem o mesmo valor.
Não conseguiram chegar a um acordo. Por isso levaram sua pendência ao Emir Ali ben Ali-Talib, a quem expuseram o ocorrido. O Emir disse então ao dono dos três pães:
— Teu companheiro está sendo muito condescendente, oferecendo-te três moedas, pois o pão dele era mais abundante que o teu. É melhor conformar-te com as três moedas.
— Só me conformarei com o que me cabe por direito.
— Mas, de acordo com o direito, só te cabe uma moeda, e as outras sete ao teu companheiro.
— Ele me ofereceu três moedas e não me conformei, e agora me afirmas que o direito me confere uma só moeda! Explica-me por que só tenho direito a isso, e só então o aceitarei.
Ali-Talib então explicou:
— Eram três pessoas, e não é possível saber quem comeu mais e quem comeu menos. Portanto, temos de supor que todos comeram quantidades iguais. Os pães comidos eram oito, que perfazem vinte e quatro terços. Cada um, portanto, comeu oito terços. Os teus três pães representavam nove terços, e deles comeste oito. O teu companheiro comeu oito terços e tinha quinze. Portanto, dos oito terços que o convidado comeu, sete eram do teu amigo, e apenas um era teu. Daí resulta que te cabe apenas uma moeda, e as outras sete ao teu amigo.
— Agora eu concordo. Nada como o que é justo!

IVAN TURGUÊNIEV

O ENCONTRO

 

 












Um dia de outono, em meados de setembro, eu repousava num bosque de bétulas. O tempo estava in­certo: desde manhã, uma chuva fina alternava com um sol quente. O céu coberto de ligeiras nuvens brancas, clareava por momentos, e deixava entrever uma nesga de azul acariciador como um, belo olhar. Imóvel, eu era todo olhos e ouvidos. Por cima de mim as folhas mal se agitavam, e esse pequeno ruído bastaria para precisar a estação. Não era, com efeito, nem a palpitação álacre e risonha da primavera, nem o doce e longo murmúrio do verão, nem o balbucio tímido e frio do outono, mas uma espécie de gorjeio em surdina. Uma brisa ligeira alisava o cimo das árvores. A floresta molhada mudava a todo momento de aspecto, conforme o sol brilhava ou se escondia. Por vezes, ela se iluminava, e tudo então parecia de súbito sorrir: os troncos das bétulas esparsas ganhavam reflexos de cetim branco; as folhas caídas rebrilhavam como ouro rutilante; os altos penachos dos fetos, já cobertos dessa tinta côr de uva madura, que eles adquirem no outono, ofereciam aos olhos, por toda parte, a confusão transparente dos seus ramos entrela­çados. Depois, tudo se escurecia de novo, as cores vivas se amorteciam; as bétulas se tornavam de um branco pálido, desse branco de neve caída há pouco, que os mornos raios do sol de inverno ainda não tocaram; e sorrateira, furtiva, uma pequena chuva chilreante caía sobre o bosque. A folhagem ainda verde começava entretanto a amarelecer; aqui e ali uma folha nova já havia adquirido tons vermelhos ou acobreados; era pre­ciso vê-la flamejar, quando um raio de sol atravessava, matizando-a, a rede cerrada da ramagem lavada pelas gotas cintilantes. Nenhum pássaro se fazia ouvir: todos estavam abrigados e silenciosos; somente o abelharuco lançava com intermitência o seu grito argentino e zom-beteiro.

Antes de me deter nesse bosque de bétulas, eu tinha atravessado, em companhia do meu cão, uma mata de faias. Confesso não gostar muito dessa árvore, do seu tronco lilás claro e da sua folhagem verde-acinzentada, de aspecto metálico, que se eleva o mais alto possível e se abre nos ares como um leque palpitante; não posso suportar o contínuo balanço dessas feias folhas redondas, desajeitadamente presas aos seus caules intermináveis.. Ela só é bonita em certas tardes de verão, quando, ele-vando-se solitária por cima dos arbustos, se oferece aos raios abrasados do crepúsculo: brilha, então, e rumoreja sob a púrpura dourada que a inunda totalmente, das frondes às raízes. É bonita, também, quando, por um dia de vento sem nuvens, freme e sussurra sobre o fundo azul do céu, cada uma de suas folhas, arrebatadas por esse movimento, parecendo querer arrancar-se, levantar vôo e perder-se ao longe. Mas, em suma, não gosto dessa árvore: razão pela qual, deixando a sua sombra, tinha escolhido para descansar esse pequeno bosque de bétulas, e tinha-me instalado sob uma delas, cujos ramos muito baixos me podiam abrigar da chuva. Enquanto contem­plava o espetáculo que se oferecia ao meu olhar, o sono me envolveu, um sono doce e profundo, que só os caça­dores conhecem.
Não sei quanto tempo durou o meu sono; mas quando abri os olhos, todo o bosque estava inundado de sol; por toda parte, através das folhas palpitantes, o azul resplandecia; uma borrasca tinha afugentado as nuvens; o tempo ficara outra vez sereno; o ar apresentava essa frescura seca e singular que enche o coração de um sentimento de bem-estar e anuncia quase sempre uma bela noite depois de um dia chuvoso.
Ia-me levantar para tentar a sorte mais uma vez, quando "os meus olhos se detiveram sobre uma forma humana imóvel. Era uma jovem camponesa. Sentada a vinte passos de mim, a cabeça pensativamente inclinada, os braços estendidos sobre os joelhos, tinha, numa das mãos semifechadas, um grande ramalhete de flores cam-pestres; cada vez que ela respirava, o ramalhete se elevava docemente sobre o seu colo. Uma blusa muito branca, fechada no pescoço e nos punhos, caía em pregas curtas e suaves sobre o seu talhe. Uma dupla fileira de pérolas amarelas ornavam o seu busto. Era bonita. Os espessos cabelos louros, de um belo matiz cinzento, se separavam em duas grossas trancas, sob um estreito f ichu vermelho, que emoldurava uma fronte de marfim; o queimado dourado, característico das peles delicadas, se destacava no resto do rosto. Eu não conseguia ver-lhe os olhos, que ela conservava baixos, mas distinguia as sobrancelhas delicadas e finas, os longos cílios úmidos; o traço de uma lágrima brilhava ao sol sobre uma das faces e descia até os lábios pálidos. O nariz, um pouco forte, não enfeava o conjunto de seus traços, que eram muito agradáveis: a sua expressão sobretudo me atraía, de tal modo ela revelava doçura, simplicidade, tristeza ingênua, a tristeza de uma criança esmagada por um sofrimento que não chega a compreender. Visivelmente esperava alguém. Um ramo seco estalou no bosque. Ela levantou imediatamente a cabeça e olhou em redor: na sombra transparente, vi brilharem um instante os seus olhos de corça, puros e medrosos. Um longo momento, sem perder de vista o lugar de onde viera o ruído ela escutou: em seguida, voltou a cabeça suspirando, inclinou-se ainda mais e pôs-se lentamente a escolher as suas flores. Os olhos ficaram vermelhos, os lábios tremeram de cortar o coração, uma nova lágrima nasceu sob os grandes cílios, deixando na face um rastro brilhante. Longos minutos transcorreram; a pobre criança não se mexia: por vezes, agitava ansiosamente as mãos, escutava, escutava sempre. Algo mexeu de novo no bosque: ela estremeceu. O ruído se acentuou, se fêz ouvir bem próximo, enfim se percebeu claramente um passo curto e decidido. Ela se soergueu, parecendo intimidada; o seu olhar atento se iluminou de esperança. Saída do mato, uma figura de homem apareceu. Os olhos dela se tornaram fixos, o rosto enrubesceu, um sorriso de satisfação lhe desabrochou nos lábios; quis levantar-se, mas tornou a cair, empali-deceu, perdeu o jeito. Foi só quando ele chegou ao seu lado que ela pôde levantar um olhar temeroso e quase suplicante.
Do meu esconderijo, eu examinava o personagem com curiosidade: para dizer a verdade, êle me causou boa impressão. Devia ser o criado de quarto favorito de um jovem rico. A sua maneira de vestir revelava pretensões a bom gosto, a uma elegante displicência; trazia, abotoado até o pescoço, um paletó curto, côr de bronze, sem dúvida herança do patrão, uma pequena gravata rosa de pontas lilases, e um boné de veludo negro com galão de ouro, enterrado até os olhos. Impla­cável, o colarinho da camisa branca subia até as orelhas, ocultando-lhe as faces; os punhos engomados cobriam-lhe as mãos até os dedos, dedos vermelhos e disformes, ornados de anéis de ouro e prata, guarnecidos de miosótis em turquesas. A sua figura vermelha, sadia, insolente, era dessas que, segundo as minhas observações, exaspe­ram quase sempre os homens e — ai de nós! — agradam freqüentemente as mulheres. Êle se esforçava por dar aos seus traços vulgares uma expressão de desprezo e de tédio: franzia continuadamente os olhos cinzento-pálidos, já quase imperceptíveis, fazia caretas, abaixava os cantos da boca, fingia bocejar e, com uma falsa desenvoltura, retificava as ondas avermelhadas dos seus "caça-noivas" ou então torcia os raros fios louros que se eriçavam por cima de seus lábios carnudos: em resumo, "posava" odiosamente. Os seus manejos começaram desde que percebeu a jovem camponesa: aproximando-se dela, num andar descuidado, permaneceu de pé um momento, levan­tou os ombros, meteu as mãos nos bolsos do paletó e, depois de lhe ter lançado um olhar negligente, sentou-se no chão.
— Há muito tempo que estás aí? — perguntou-lhe com os olhos distraídos e distantes, bocejando e balan­çando uma das pernas.
A moça não encontrou logo forças para lhe res­ponder.
—     ‘Sim, há muito tempo — murmurou enfim, com uma voz indistinta.
—     Qual! (Tirou o boné, passou majestosamente a mão pela espessa cabeleira frisada a ferro, e que começava baixo na testa, lançou em torno um olhar cheio de dignidade e em seguida tornou a pôr o boné na sua preciosa cabeça.) Eu tinha-me esquecido com­pletamente. E depois, chove, além do mais. (Bocejou outra vez). Estou sobrecarregado de serviço, não consi­go fazer tudo… E o patrão ainda se zanga! Nós partimos amanhã…
—     Amanhã? — articulou a pobre moça com um olhar cheio de terror.
—     Sim amanhã… Vamos, vamos, eu te peço — acrescentou êle num tom aborrecido, vendo-a estreme­cer e abaixar a cabeça — eu te peço, Akulina, não chores, tu bem sabes que eu detesto isso. (Franziu o nariz chato). Senão vou-me embora imediatamente. Que bobagem, choramingar!
—     Não, não, eu não estou chorando — disse ela bem depressa, esforçando-se por engolir as lágrimas. — Então é amanhã que o senhor parte — recomeçou, depois de um momento de silêncio. — Só Deus sabe quando nos reveremos, Vítor Alexandrytch!
—     Reveremos, reveremos! Se não fôr no ano que vem, será mais tarde. Eu acho que o patrão tem a intenção de trabalhar em Petersburgo — acrescentou êle num tom negligente e algo fanhoso; a não ser que parta­mos para o estrangeiro.
—     O senhor me esquecerá, Vítor Alexandrytch — suspirou tristemente Akulina.
—     Mas não, por que haveria de esquecer? Eu não te esquecerei. Apenas, não sejas tola, obedece a teu pai.. . É claro que não te esquecerei.
Êle se estendeu e bocejou de novo.
—     Não se esqueça de mim, Vítor Alexandrytch — tornou ela com voz suplicante. — Eu o amei com todas as minhas forças, pelo senhor eu fiz tudo… Diz que obedeça a meu pai, mas como é que o senhor quer que eu faça isso?…
—     Como? — disse êle com voz cavernosa, estendido de costas, as mãos passadas sob a cabeça.
—     Mas seja sensato, Vítor Alexandrytch, o senhor bem sabe…
Ela se calou.
Vítor brincava com a corrente de aço do relógio.
— Tu não és tola, Akulina — disse êle enfim. Não digas bobagens, portanto. Eu quero o teu bem, compreendes? Sim, tu não és tola, não tens nada de bronca, é verdade; tua mãe também nem sempre o foi, o que não impede que tu não tenhas instrução alguma; é por isso que precisas escutar o que te dizem.
— Eu tenho medo, Vítor Alexandrytch!
—     Ora, que bobagem, minha querida, eis uma bela razão para se ter medo!… Que é que tens aí? — acrescentou êle voltando-se para ela. — Flores?
—     Sim, respondeu Akulina, com ar abatido… — Eu colhi tasnas — replicou ela animando-se. — É bom para os bezerros. E isto é cânhamo da água, bom para curar escrófulas. Veja que flor bonita. Nunca vi uma flor tão bonita assim. Aqui estão violetas e miosótis… Colhi isto para o senhor — ajuntou ela apanhando sob as flores amarelas da tasna, um pequeno ramalhete de violetas presas por um laço de relva. — O senhor as quer?
Vítor estendeu uma mão preguiçosa, tomou as flores, cheirou-as com indiferença e se pôs a virá-las entre os dedos, os olhos no céu* o ar digno e sonhador. Akulina o contemplava… e seu olhar triste estava cheio de ternura, de devoção, de submissão, de amor. Com medo de aborrecê-lo, não ousava chorar, mas os seus olhos lhe diziam adeus e se satisfaziam pela última vez; quanto a êle, sempre estendido como um sultão, aceitava a ado­ração com uma condescendência magnânima. Confesso que o seu rosto rubicundo, onde se lia, através de uma despreocupação afetada, o egoísmo satisfeito e fácil, me inspirava uma indignação profunda. Akulina estava deliciosa nesse instante. Toda a sua alma se revelava confiante e apaixonada, voltando-se para êle num impul­so de amor, enquanto êle. .. êle, tendo deixado cair sobre a relva as violetas e tirado do bolso um pedaço de vidro rodeado de bronze, se esforçava, em vão por fixá-lo ao ôljio; franzia inutilmente o sobrolho, contraía a face e mesmo o nariz; o objeto, porém, lhe caía sempre na mão.
— Que é isto? — perguntou Akulina estupefata.
— Uma luneta — respondeu êle cheio de impor­tância.
—     Para que serve?
—     Para se ver melhor.
—     Deixe-me experimentá-la.
Vítor lhe deu a luneta contra a vontade.
— Toma cuidado, não a quebres!
—     Não tenha medo. (Aproximou timidamente o vidro do olho). Não vejo nada — confessou com inge­nuidade.
—     Fecha o olho — respondeu êle com uma voz irritada de chefe.
Ela fechou o olho diante do qual estava o vidro.
— Não esse boba, o outro! — gritou Vítor; e, sem lhe dar tempo para corrigir o engano, tirou-lhe a luneta.
Akulina enrubesceu, riu nervosamente e se afastou.
—     Parece que isso não é feito para nós!
—     Eu o creio realmente!
—     Ah! Vítor Alexandrytch, que vai ser de mim sem o senhor — recomeçou ela de súbito.
Vítor limpou o vidro com a ponta do paletó e reco­locou-o no bolso.
— Sim, não há dúvida — dignou-se êle enfim a responder; — nos primeiros tempos isso te parecerá duro.
Deu-lhe uma palmada nas costas com ar protetor; ela tomou-lhe docemente a mão e beijou-a.
— É claro, tu és uma boa menina — continuou êle com um sorriso satisfeito — mas que se há de fazer? Julga tu mesma; meu patrão e eu não podemos ficar aqui eternamente; o inverno está para chegar; um inver­no no campo é insuportável, tu o sabes bem quanto eu. Em Petersburgo as coisas são diferentes. Lá há mara­vilhas que não serias capaz de imaginar, nem mesmo em sonhos, minha pobre pequena. Que casas! Que ruas! ‘ E a sociedade, a instrução… É extraordinário!
Akulina o escutava com avidez, os lábios entrea-bertos, como uma criança…
—     Aliás — acrescentou êle, virando-se sobre a relva — para que contar tudo isso ? Tu és perfeitamente inca­paz de compreender.
—     Por que razão, Vítor Adexanclrytch? Eu com­preendi, deixe disso, eu compreendi tudo.
— Vejam só!
Akulina baixou a cabeça.
—     Antes, o senhor não me falava assim, Vítor Alexandrytch — disse ela sem levantar os olhos.
—     Antes … antes … — grunhiu êle de mau humor.
Ambos se calaram.
—     Está na hora de partir — disse Vítor, apoiando-se sobre o cotovelo.
—     Espere ainda um pouco — suplicou Akulina.
—     Esperar que?
—     Espere! — repetiu ela.
Vítor se estendeu de novo e se pôs a assobiar. Akuli­na não tirava os olhos dele. Pude perceber que a sua emoção ia num crescendo; um ligeiro tremor lhe agitava os lábios, as faces pálidas se tornaram rosadas…
—     Vítor Alexandrytch — recomeçou ela enfim, com uma voz martelada — eu juro que o que está fazendo não é direito.
—     Que é que não é direito? — perguntou êle levan-tando-se um pouco, a cabeça voltada para ela, de sobrolho carregado.
—     Sim, não é direito, Vítor Alexandrytch. Podia perfeitamente dizer-me uma palavra gentil antes de me abandonar. Pobre abandonada que sou! Só uma peque­na palavra.
—     Que queres tu que eu te diga?
—     Devia sabê-lo melhor do que eu, Vítor Alexan­drytch. O senhor parte sem me dizer uma palavra… Que foi que eu fiz para merecer isso?
—     Como és engraçada! Que é que eu posso fazer?
—     Só uma pequena palavra!
—     É uma verdadeira lengalenga! — resmungou êle, levantando-se.
—     Não se zangue, Vítor Alexandrytch — apressou-se ela a dizer, retendo as lágrimas cóm dificuldade.
—     Eu não me zango, mas tu és uma boba … Eu não posso casar contigo, não é verdade? Então que é que tu queres? Vejamos que queres tu?
Êle a encarou fixamente como se esperasse uma resposta.
— Nada … eu não quero, nada — balbuciou ela mal ousando estender para êle as mãos trêmulas. — Mas se me dissesse uma única palavra gentil antes de me abandonar…
E começou a chorar.
—     Bom, já começa o choro — exclamou Vítor pu­xando o boné sobre os olhos.
—     Eu não quero nada — continuou ela, por entre soluços, escondendo o rosto nas mãos. — Mas que vai ser de mim agora, que vai ser de mim, pobre desgraçada? Casar-me-ão com um homem que eu não amo! Pobre de mim!
—     Continua, continua! — murmurou Vítor batendo com os pés no chão.
—     Se êle me dissesse ao menos uma palavrinha, antes de partir, só uma palavrinha… "Escuta, Akuli­na, eu…"
Mas os soluços impediram-na de continuar; ela se jogou de cara na relva e chorou, chorou desesperada-mente…
Todo o corpo se sacudia; tremores lhe agitavam a nuca. A sua dor, durante muito tempo contida, explodia enfim. Vítor ficou um momento a olhá-la, deu de ombros, afastou-se e partiu a grandes passos.
Alguns instantes transcorreram. Akulina serenou um pouco, levantou a cabeça, pôs-se de pé, passeou o olhar em torno, juntou as mãos; quis correr atrás dele, mas as pernas se recusaram, fazendo-a cair de joelhos… Não me contendo mais, precipitei-me para ela; mas apenas me percebeu, as forças lhe voltaram de súbito: deu um pequeno grito e desapareceu atrás das árvores, abandonando as flores espalhadas no chão.
Permaneci ali um momento; depois, reunindo as violetas, saí do bosque. O sol já estava baixo num céu pálido e puro: seus raios pareciam também pálidos, mais frios, esparzindo-se sem brilho num resplendor suave e transparente. Só meia hora nos separava da noite; no entanto, apenas alguns rubores indecisos anun­ciavam o crepúsculo. Através dos colmos amarelados, ressecados, um vento impetuoso chegava a mim, em raja­das; ao longo do bosque, pequenas folhas encarquilhadas fugiam à sua aproximação, turbilhonando pelo caminho. A parte da floresta que erguia a sua muralha em face da planície fremia inteiramente e brilhava com um res­plendor mortecido. Na relva avermelhada, no menor caule, por toda parte, reluziam inumeráveis filandras.


Detive-me… Uma tristeza me invadiu: através do sorriso álacre, ainda cheio de frescura, da natureza em declínio, percebia-se a angústia do inverno próximo. Num vôo desgracioso e pesado, um corvo circunspecto passou por cima de mim, abaixou a cabeça, para me lançar um olhar de lado, aprumou-se e perdeu-se croci-tando além da floresta. Numerosa revoada de pombos, que chegavam em linha reta dos arredores de uma eira, formou subitamente em coluna, depois se abateu e se dispersou prudentemente sobre o restôlho! prova certa do outono! O rolar de uma carroça vazia se fêz ouvir atrás de uma colina desnuda.
Voltei para casa. Mas a imagem da pobre Akulina me perseguiu durante muitos anos, e conservo ainda as suas violetas, que há muito tempo já murcharam.

sábado, 18 de junho de 2011

ANTÔNIO MARIA














Esta noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá. Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto? Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer: — Estou me sentindo assim, assim, assim... A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os que fazeres do sexo. Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença. E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country". Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca. Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme. Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta: — Que é que houve? O senhor está mais velho? Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou: — O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu. Tinha pensado que, sem os óculos... Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes. Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.

Dalton Trevisan

O VAMPIRO DE CURITIBA









Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo - beijo de
virgem é mordida de bicho cabeludo . Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz. É uma que
molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o
suspiro do moço e o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro
só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não
sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada - ai, querida, é uma folha seca
ao vento - e encostasse bem devagar na safadinha. Acho que morria: fecho os olhos e me derreto
de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se
encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima
de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem
ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no
coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para
baixo, esvaída em sangue.
Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de
uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí
vai rebolando-se inteira. Quieto no meu canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho.
No fundo de cada filho de família dorme um vampiro - não sinta gosto de sangue. Eunuco, ai
quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um anjo pode -dizer amém!
Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas. Perdoe a indiscrição, querida, deixa o recheio do
sonho para as formigas? Ó, você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais
um, só mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro a seus pés. Por Deus do céu não
lhe faço mal - o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado.
Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo do crime?
Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência é que me perde, a quantas
afugentei com gesto precipitado? Culpa minha não é. Elas fizeram o que sou - oco de pau podre,
onde floresce aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no
espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por que é então? Olhe as
filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me
arranhasse o corpo inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de
ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu?
Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se divertem a seduzir
o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã ou viúva? Marido enterrado, o véu
esconde as espinhas que, noite para o dia, irrompem no rosto - o sarampo da viuvez em flor.
Furiosa, recolhe o leiteiro e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com
leque recendendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado pela rua. Ela
está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta, distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o
joelho... Redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a
coxa fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela
dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!
Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida, não faça isso:
eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atrai o pobre rapaz que se deite com a
mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama - acho que ficaria inibido. No fundo, herói de
bons sentimentos. Aquele tipo do bar, aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar
feroz. Alguns preferem é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda mais
de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que embebeda o
colibri e enraivece o vampiro.
Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de pluma, pena e
arminho - rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos do corpo. Ó bracinho nu e
rechonchudo - se não quer por que mostra em vez de esconder? -, com uma agulha desenho
tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.
Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel.
Todas de azul e branco - ó mãe do céu! - desfilando com meia preta e liga roxa no salão de
espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: a força dos vinte unos. Olhe, suspenso nove
centímetros do chão, desferia vôo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique
velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se
iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o
anel mágico - conheci cada pai de família!
Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de retratos?
Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca perdoaria: o menino que
marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia. Imagine » susto, a vergonha fúlgida, as horas de delírio na alcova -
à palavra alcova um nó na garganta.
Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a safadinha: banho
de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho arregalado no primeiro varão. Lá envelhece,
cotovelo na almofada, a solteirona na sua tina de formol.
Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda do lobisomem. Não olhe agora. Cara
feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante ao peso das espigas maduras.
Oxigenada, a sobrancelha preta - como não roer unha? Por ti serei maior que o motociclista do
Globo da Morte. Deixa estar, quer bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou
bonito, mas sou simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás
dela, quando menino era a bandinha do Tiro Rio Branco.
Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua de Átila - onde
pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do meu olho? Se existe força do
pensamento, na nuca os sete beijos da paixão.
Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira, tonta,
abandona-se na mesma hora. Ó morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe do céu, até as moscas
instrumento do prazer - de quantas arranquei as asas? Brado aos céus: como não ter espinha na
cara?
Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar - nem uma baixou sobre
mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo e chifrudo, rastejariam e beijavam, a cola peluda.
Tão bom, só posso morrer. Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de
Quéops, Quefren e Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda, ó Deus.
Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na danação dos vinte anos.
Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo, pregá-las na nuca? Se o cego não vê a
fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento
atormentado pelas pulgas, que dá voltas para morder o rabo. Em despedida - ó curvas, ó delícias -
concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no braseiro - os pés em
carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo - beijo de virgem é mordida
de bicho-cabeludo. Você grita vinte e quatro horas e desmaia feliz